Em 28 de março de 2025, o Governo Italiano editou o Decreto-Lei n. 36/2025, que impõe severas restrições ao reconhecimento da cidadania italiana por descendência (iure sanguinis). A medida, ao limitar esse direito aos filhos e netos de italianos, afeta diretamente milhões de descendentes residentes fora da Itália, especialmente nas Américas, e inaugura um cenário de profunda insegurança jurídica, ruptura com a tradição legislativa e violação de direitos fundamentais.
Se antes bastava comprovar a linha de ascendência ininterrupta de um cidadão italiano, agora o critério foi achatado por uma lógica redutora, que desconsidera o papel histórico da emigração italiana e fere pilares essenciais da Constituição da República Italiana. O presente artigo tem por objetivo refletir, sob o prisma da legalidade e da justiça, sobre os vícios e impactos dessa nova norma.
A cidadania como direito originário: o que não pode ser apagado por decreto
Segundo a jurisprudência reiterada da Corte di Cassazione (v.g. sentenças n. 4466/2009 e 7771/2020), o direito à cidadania italiana por sangue é adquirido ex lege no momento do nascimento, sendo imprescritível e de natureza declarativa. O que significa, em outras palavras, que o reconhecimento formal é apenas um ato declaratório de um status já existente.
O Decreto-Lei n. 36/2025, ao tentar restringir esse reconhecimento com base em gerações ou local de nascimento do ascendente, viola o princípio da irretroatividade das normas em prejuízo de direitos adquiridos, consagrado no art. 25 da Constituição italiana.
Urgência inexistente e discriminação geográfica: o decreto é inconstitucional desde a origem
Editado sob o argumento de “sobrecarga administrativa”, o decreto fere o art. 77 da Constituição ao abusar do instrumento do decreto-lei sem comprovar uma situação de urgência real. A Corte Constitucional já deixou claro que o uso desse expediente só é legítimo quando há necessidade extraordinária e urgente, o que não se verifica em um processo de reforma estrutural da cidadania.
Além disso, cria-se uma distinção entre descendentes nascidos na Itália e os nascidos fora dela: aos primeiros, mantém-se o direito pleno à transmissibilidade; aos segundos, nega-se esse direito se ultrapassada a segunda geração. Isso gera, na prática, duas categorias de cidadania: uma de “série A” e outra de “série B” — inadmissível em qualquer democracia constitucional.
Um decreto que desafia a Constituição, o direito europeu e os tratados internacionais
O novo decreto viola diversos princípios constitucionais, como a igualdade (art. 3), o direito à cidadania (art. 22), à identidade pessoal (art. 2), à tutela dos menores (art. 30) e à boa administração pública (art. 97). Mas os vícios não param aí.
Em plano internacional, fere a Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDU), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança e o art. 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Para a Corte de Justiça da União Europeia (caso Rottmann, C-135/08), a cidadania nacional, que confere automaticamente a cidadania europeia, não pode ser retirada ou negada sem respeito ao princípio da proporcionalidade e ao direito à confiança legítima. A jurisprudência europeia, inclusive, admite que medidas que gerem a perda ou negação da cidadania devem passar por análise de compatibilidade com o direito europeu — o que abre margem para questionamento judicial em tribunais internacionais.
Memória apagada, herança negada
A medida também fere profundamente o espírito da Constituição italiana ao ignorar a contribuição histórica dos italianos no exterior, especialmente na América Latina. Famílias que por gerações preservaram cultura, idioma e identidade são agora excluídas sob argumento burocrático. A lógica é perversa: o Estado, que por décadas silenciou frente à lentidão e ineficiência de seus consulados, agora pune os descendentes por uma inércia que ele mesmo criou.
O Judiciário como guardião da cidadania
Em face de tudo isso, cabe ao Judiciário cumprir seu papel de guardião dos direitos fundamentais. A via judicial permanece, hoje, como o único instrumento eficaz para garantir o reconhecimento da cidadania italiana iure sanguinis, diante da falência do sistema consular e da tentativa legislativa de restrição retroativa.
A esperança reside na reafirmação dos princípios que estruturam o Estado de Direito, entre eles a não discriminação, a segurança jurídica e a irretroatividade das leis. O futuro da cidadania italiana depende, agora, da resistência jurídica frente às distorções de um decreto que pretende apagar uma herança histórica legítima.